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UIRAPURU CANTOU DUAS VEZES

Porque de fato, era o canto do uirapuru no meio da mata, aquele canto que eu ouvi pela primeira vez num disco do ornitólogo Dalgas Frisch na casa de minha avó. Por qual motivo, seria eu agraciado agora com essa sorte? Disseram: foi sorte de principiante. Foi a primeira vez que pisei o santuário amazônico. Tivesse sido mais rápido, teria gravado com o celular. Uirapuru entoou duas vezes o canto raro. A colega de trabalho de pesquisa foi testemunha.


E passamos sob enormes folhas de buçu (Manicaria saccifera). Buçu, explicou-me o professor-ecólogo, é utilizado pelos índios para cobrir as tabas. O matuto me falou a mesma coisa. Quem passou o conhecimento: o ecólogo para o matuto, ou o contrário, o matuto para o ecólogo? As folhas de buçu nos fazem sentir pequeninos como se estivéssemos numa terra de gigantes como num filme de ficção científica.


Antes de sairmos para a mata, no café da manhã, matuto sentou-se à mesa e falou que quem ganhou as eleições para prefeito em Manacapuru, foi uma prostituta. Nada falei, achei que não deveria julgar Madalena que ganhou as eleições em Manacapuru, nem o pensamento conservador do matuto.


No caminho, o matuto me disse que tem muita onça pintada. Andei no final da tarde, a esmo pela estrada, outro matuto, veio me dizer: - moço, não é recomendável andar pela estrada, a essa hora, as onças costumam sair.


Já o sr. Lagarto parecia ter vindo de Alice no País da Maravilhas. Saiu debaixo de umas folhas, veio andando desengonçado e alcançou o Sol sobre a madeira perto da torre com os instrumentos. Viu os civilizados: - Ora, ora, temos visitas – poderia ter dito. Ficou algum tempo, exibiu três listas amarelas, e os olhos se movimentaram rápidos, abriu a boca e apanhou um inseto com a língua ágil. Quando viu que perdemos o interesse por ele, seguiu o seu caminho em direção à floresta sombria.


Eram duas horas da tarde, e a floresta já estava escura. Falamos de pessoas que se foram. Pessoas consumidas por suas vicissitudes. Porque seguimos por esse caminho sombrio na conversa, dentro da floresta? Gosto da floresta sombria com os seus ruídos. E teve tempestade na floresta. É interessante e amedrontador a tempestade na Amazônia. O vento propicia uma chuva de folhas que antecede a água. E aquelas folhas aos milhares caem como pequenas lâminas e fazem um som de pequenas palhetas. E caem em seus movimentos num giro meio quebrado. Depois veio o estrondo dos relâmpagos, pensei que poderia cair uma árvore sobre as nossas cabeças.


A solidão da floresta também judia. Acordo de madrugada com a música alta e a água fina e fria que resvala pela tela de proteção dos insetos e borrifa a minha cama. Música na madrugada com chuva, parece fantasmagórica na base científica no meio da floresta. O matuto escuta muita música. “Lábios que beijei...” Música antiga dos anos quarenta. A melodia entra na minha cabeça. Tento dormir, apesar da distância de nossos quartos. A mulher e o companheiro escutam calados, deitados nas redes. De dia, ele grita com essas pessoas que conhecem de perto as suas “ranhetices”. As músicas se seguem. “O boêmio voltou...” Matuto parece ter uma ferida dolorosa dentro do peito. Escuta música como se tomasse morfina. E eu escutei o uirapuru cantar duas vezes no meio da mata.


Luiz Felipe Rezende





Folhas de buçu (Manicaria saccifera).



Torre com instrumentos científicos na estação K34, na Amazônia.


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