Após a missa, os jovens da pacata Três Corações, no início dos anos 70, ficavam na praça conversando, paquerando as meninas e passando o tempo à espera do almoço de domingo. As conversas eram as mais variadas: futebol, programas de TV, a guerra fria com a ameaça atômica, filmes de sucesso como os de James Bond, faroestes (“Dólar furado”, “O mau, o bom e o feio”), músicas e gibis. Usufruíamos assim, alguns privilégios da classe média sul mineira.
As conversas eram tão variadas que até fazíamos previsões. Alguém lá no banco da praça, um dia, falou que no futuro a máquina com a inteligência artificial (IA) dominaria o mundo, haveria muita violência, as relações humanas seriam frias e um estado totalitário e cruel governaria os países. (Aqui faço uma pequena digressão: a IA tem sido colocada em xeque, como o fazem o neurolinguista Noham Chomsky e o neurologista Miguel Nicolelis que consideram que a IA não passa de uma plagiadora, ou máquinas programadas para imitar a lógica humana).
Quanto às previsões, pergunto: - como aqueles adolescentes interioranos (pra não dizer caipiras), poderiam argumentar com tanta segurança e paixão sobre esses temas numa época que tínhamos apenas três canais de TV (no máximo) e nem todos liam jornal? Talvez essas ideias pudessem vir da literatura ou do cinema. O filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick mostra o computador HAL 3000, como um ser terrivelmente manipulador dos astronautas numa viagem a Júpiter. Em 1971, estourou nas bilheterias o filme Laranja Mecânica (outra obra prima de Stanley Kubrik), baseado no livro de Anthony Burgess. Não assisti ao filme na época, porque eu era “di menor”. Só fui ler o livro em 1976, fascinado com a linguagem que o autor criou para os jovens “chapados” como o “leitinho sincopado” (leite alterado por substâncias para dar barato). A obra retrata uma sociedade futura diante de um Estado incompetente e violento, em que jovens da classe média londrina formavam gangues para praticarem barbaridades contra idosos, mulheres e mendigos; e o líder de uma delas quando chegava em casa, após uma noite de atrocidades, no aconchego de seu quarto, mergulhava na música de Beethoven. Outro filme de grande impacto entre nós foi o Planeta dos Macacos com aquela imagem inesquecível da estátua da liberdade semi soterrada na areia da praia revelando que o homem destruiu a sua civilização e foi suplantado por seu primo.
Também fizemos algumas previsões que hoje são banais ou corriqueiras como uma porta que se abre automaticamente à nossa aproximação; a comunicação por internet, ou seja, conversaríamos com uma pessoa à distância, na época era uma coisa de louco e ficávamos fascinados com essas possibilidades. Conseguimos especular que os recursos naturais poderiam ficar escassos com o aumento das populações, mas não conseguimos prever que as mudanças climáticas poderiam ocorrer, não chegamos a esse requinte de futurologia.
Também não imaginávamos a existência de redes sociais, nem de aplicativos e que perderíamos a privacidade pelos celulares que gravam as nossas conversas, sabem o que gostamos e consumimos, quando tomamos banho e dormimos. Este talvez seja o Grande Irmão do livro “1984” de George Orwell, escrito em 1949.
Mas ao vermos hoje, como o Estado tem dizimado as populações em políticas de limpeza étnica como em Gaza e no Líbano. Ao vermos o Estado fazer troça dos que morrem em epidemias, como ocorreram em relação à Covid. Ao vermos a suplantação de direitos das minorias e o aumento do racismo. Ao vermos a grande expansão da extrema direita no mundo e a configuração de um Estado anti-humanista. Ao vermos estes fatos, fico pensando que aqueles adolescentes interioranos (pra não dizer caipiras) acertaram (infelizmente) e previram este cenário em suas conversas num banco da praça, após a missa, olhando as garotas e com o estômago vazio, esperando o almoço de domingo, lá no início dos anos 70.
Luiz Felipe Rezende
Três Corações - início da década de 60 - Imagem gerada por IA (solicitação: banco
praça principal e Cine São Miguel de praça, Minas Gerais - futurologia)
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