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O ÚLTIMO BEATNICK


Quando desembarquei em São Francisco, na Califórnia, em dezembro de 2013, no aeroporto, sob a vista de um funcionário indiano de trança longa saindo do turbante, um policial negro, um pouco gordo e de bigode me perguntou:

- O que veio fazer em São Francisco, Sir?

- Vim para a AGU – então o policial carimbou o meu passaporte e me liberou.


AGU é a sigla para American Geophysical Union que promove a maior conferência ou congresso em Geociências no mundo. O evento reúne cerca de 30 mil pessoas entre cientistas, pesquisadores e estudantes. Já está no calendário da cidade.


Numa folga do congresso, à tarde, aproveitei para conhecer a famosa livraria City Lights Books que lançou os escritores beatnicks como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, na década de 50. Beatnicks foi um movimento de artistas que pregavam a liberdade e a vida nômade, em oposição ao padrão de vida materialista nos Estados Unidos, ainda na década de 50. Para chegar à livraria, preferi não pegar ônibus para não correr o risco de pegar condução errada e me perder. Por isso saí a pé do hotel onde fiquei hospedado no centro, perto do ponto de partida do bondinho de Frisco.


Adentrei a famosa Chinatown como se estivesse, de repente penetrado em Pequim com suas construções típicas e com as lanternas vermelhas decorando as ruas. Chinatown foi diversas vezes retratada no cinema como no filme homônimo de Roman Polanski, com Jack Nicholson e Faye Dunaway. Desemboquei na avenida onde fica a livraria City Lights. Uma avenida cheia de casas de strip tease, sex shops e night clubs. Era de dia e estava tudo fechado.


Quando cheguei à frente da famosa livraria, um senhor calvo e gordo me abordou. E me falou que do outro lado da rua funcionava o museu Jack Kerouac. Tentou me convencer a conhecer o museu. Reparei que ele não tinha os dentes de baixo. Parecia ter alguma semelhança comigo, pois além da calvície, deveria ter a minha idade. Insistiu mais um pouco para que eu conhecesse o museu Kerouac, falou que tinha muita coisa de interesse lá, dos beats. Mas eu estava determinado a conhecer antes a famosa City Lights.


Tinha até uma certa esperança de encontrar o poeta e proprietário da livraria, Lawrence Ferlinghetti, figura lendária do movimento beat. Me lembrei do escritor e jornalista Eduardo Bueno que esteve lá em 1980 e teve a oportunidade de conhecer Ferlinghetti. A primeira impressão de Eduardo Bueno foi muito imaginativa: “ - de jeans, camisa de flanela xadrez de lenhador canadense, botas rústicas, sorridente ao lado de três garotas lindas, estava Ferlinghetti de barbas grisalhas e que apesar de italiano parecia um daqueles irlandeses que bebem uísque no gargalo e que também aparecem trabalhando na construção de estradas de ferro em filmes classe B sobre a conquista do oeste”.


Na livraria, além dos livros do acervo, é claro, reparei nas belas fotografias em preto e branco decorando as paredes. E fui ao porão, onde se dizia que os beats se reuniam para queimar a cannabis. Lá funciona uma seção de livros de antropologia. Muita antropologia. E livros de povos indígenas da América do Norte conhecedores da alma mater da terra, da linguagem da natureza, dos espíritos e das estrelas.


Depois, fui solenemente ao segundo andar, no Salão dos Poetas. Pensei, aqui devo encontrar Lawrence. Mas deparei com os livros de Fernando Pessoa, edição da LP&M, do Brasil. Pensei é um privilégio que tenho, de poder ler os poemas de Pessoa com fluência, mesmo sendo no português de Portugal. Encontrei Pessoa, mas nada de Ferlinghetti.


O lendário Ferlinghetti veio a falecer esse ano, em fevereiro, aos 101 anos. Boa parte da imprensa noticiou como sendo a morte do último beatnick. Mas a crítica se dividiu se ele foi de fato um poeta beatnick, pois às vezes a influência de T. S. Eliot é mais forte, como o próprio Ferlinghetti admitia. Na livraria, comprei o livro de poemas de Bob Dylan, Tarântula, de 1966, afinal Dylan foi muito ligado aos beatnicks, além de amigo de Ginsberg e de Gregorio Corso. Comprei mais alguns posters e postais da livraria.


Quando saí, o museu Kerouac já estava fechado. Um amigo me falou, não deixa de tomar uma cerveja no Vesuvio que fica ao lado da City Lights. O bar Vesuvio foi inaugurado em 1948 e é considerado um monumento histórico ao jazz, à poesia, à arte e à geração beat. Pelo Vesúvio passaram escritores e artistas, marinheiros, dançarinas exóticas, jogadores de xadrez, empresários, vagabundos etc. E dizem que certa vez, Kerouac furou com Henry Miller. Kerouac ficou bêbado no Vesuvio e não foi ao encontro marcado. Esnobou Miller que já era celebridade na época, e Kerouac ainda estava em ascensão.


Me sentei numa mesa do Vesúvio. Estava com uma fome que até doía o estômago, não tinha almoçado e ainda tinha feito a caminhada. Acho sem graça, beber cerveja sozinho. Queria comer algo bem simples como um queijo quente e tomar um suco de laranja. Mas fiquei invisível, ninguém parecia perceber a minha presença lá. E o meu instinto e faro me diziam que não iria sair coelho daquele mato. Saí do bar e encontrei um café nas proximidades onde consegui o meu queijinho quente no pão francês que comi numa mesinha com mosaico de cerâmica.


Peguei de volta, o caminho pela Chinatown. Numa esquina, um chinês me pediu que o fotografasse. Era um chinês da China e também estava no congresso da AGU, como eu. E também trabalhava no mesmo tópico que eu, um bicho chamado “modelo de vegetação global dinâmica”. Ele estava fascinado por ter conhecido essa mini China na América. Segui caminhando por Chinatown, e me lembrei do senhor gordo, calvo e sem dentes. Me lembrei de sua paixão e devoção em manter o museu Kerouac. Pensei que de coração e alma, talvez ele fosse o último beatnick pra contar a história.


LUIZ FELIPE REZENDE



















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