“Fugiu ao capitão Estevão Casimiro dos Reis (da Fazenda Bom Jardim) o seu escravo José, mulato alto, corpo regular, pouca barba, rosto comprido, olhos pequenos, bons dentes, costuma trazer o cabelo crescido, tem as pernas um pouco tortas para fora, quando anda não assenta bem um dos calcanhares no chão por causa dos cravos de bouba, quando fala com pessoas de respeito é sempre olhando para baixo, tem sinais de castigo nas costas e nádegas, tem 30 anos de idade mais ou menos. Arreia, ferra e toca burros, é carreiro em qualquer serviço, gosta muito de montar em animais bravos e tocar viola.”
Este texto acima foi um anúncio pago por um senhor de escravos e publicado no jornal Diário de Minas, em 24 de dezembro de 1873, em Ouro Preto e reproduzido no livro “De lá pra cá” (edição do autor), do amigo matemático Luiz Alberto Branquinho Gonçalves. Ao construir a árvore genealógica de sua família por parte de mãe (dona Beatriz, filha da cordial e afável dona Alice), Luiz Alberto também narra um pouco da história das famílias tradicionais que fazem parte desta genealogia. Fazendo isto, acaba trazendo à tona muitos fatos que compõem a história de Três Corações (minha terra natal) e do sul de Minas. É um trabalho metodológico, de fôlego e extensa pesquisa em várias fontes desde documentos de cartório, dioceses, bibliografias e depoimentos de pessoas.
Voltando ao anúncio no jornal citado no primeiro parágrafo, podemos deduzir que o escravo José tinha um perfil bastante polivalente e era homem de muitos talentos. Deveria fazer falta ao seu senhor, pois além da especialidade de ferrar e tocar burros, desempenhava múltiplos trabalhos (é carreiro em qualquer serviço). Também tinha um perfil voltado para o lado selvagem e lúdico (montar animais bravos e tocar viola). Fico pensando no que ele tocava na viola? Talvez cateretê, pois é um ritmo que era utilizado pelos jesuítas para converter os índios ao cristianismo.
Com este perfil de montar bicho bravo e tocar viola, negro José deveria ter impulsos de liberdade e não se conformava com cativeiro, por isso tivesse sinais de castigo nas costas e nas nádegas e estava novamente foragido. Na continuação do anúncio (que não foi reproduzido acima) é dito que provavelmente o escravo encontrava-se em Ouro Preto. Ouro Preto, capital de Minas na época, uma cidade glamourosa e com muito ouro, deveria ser um tipo de Paris das Minas Gerais. Deveria atrair o escravo José com a sua vivacidade e inteligência.
Ainda no anúncio do escravo que fugiu, aparece um termo pouco conhecido: “cravos de bouba” no calcanhar. Ao fazer uma busca na internet, encontrei a monografia “Enfermidades da população escrava em Minas Gerais” de Alisson Eugênio, da Universidade Federal de Alfenas, que se baseou na obra “Erário mineral” de Luís Gomes Ferreira, escrita em 1735. Cravos de bouba é uma doença contagiosa, purulenta que em princípio atinge a pele e se não é tratada alcança os ossos causando deformidade e perda de capacitância. Atualmente é bem controlada e sensível ao tratamento com penicilina. No tempo da escravidão, os médicos práticos prescreviam pílulas de mercúrio sublimado e como complementação, podia-se usar aguardente, urina ou água quente sobre as chagas. Mas Alisson Eugênio narra que na maioria das vezes, os donos nada faziam, e os escravos definhavam e morriam aos poucos.
A medicina prática muito comum nesta época também está registrada no livro de Luiz Alberto. Um caso citado no livro, é do comendador José dos Reis Silva Rezende que tinha o dom de curar. Sem nunca ter cursado medicina e baseando-se em parte num dicionário de medicina popular de nome Chernoviz (edição de 1862) atendia às pessoas na fazenda ou nas casas dos próprios enfermos. O comendador atuava abrindo abscessos, tratando de fraturas, curando febres e numa ocasião, amputou a perna de um acidentado.
No livro podemos extrair várias histórias como a de Olympia Amélia Branquinho, que após tentar todos os tratamentos existentes na época para curar o filho esquizofrênico, e como nenhum deles surtiu efeito, e para evitar o tratamento desumano dos manicômios, construiu um cômodo exclusivo na casa para o filho. Dona Olympia tinha um coração generoso que acolheu um número imenso de afilhados.
Luiz Alberto também revela que os Severo Costa são ascendentes da atriz Marieta Severo, cuja avó tinha o nome de Marieta de Carvalho Costa. É dos Severo Costa que consta uma caçada à fauna da época na região. Aliando-se a alguns membros da família Junqueira, parte uma comitiva a cavalo com os seus cães obedecendo ao comando de uma corneta de chifre de boi rumo à região de Poços de Caldas. No caminho caçam o que aparece na frente: onças, veados, lobos, capivaras e jacarés. Registra-se o cerco a uma onça pintada que encurralada fugiu para o alto de um jatobá. Os caçadores tiraram na sorte, quem daria o tiro de misericórdia. E um estreante, o capitão Antônio Martiniano, com um único tiro abateu o animal.
Alguns inventários são reproduzidos no livro quase na íntegra e através deles podemos ver os costumes e hábitos da sociedade. Vemos a descrição de uma grande variedade de objetos como cordões de ouro, rosários, talheres, tachos de cobre, bacias, espumadeira, alambique, caixão de guardar fubá, rodas de fiar, urinóis, roças de milho, e uma casa em Águas Virtuosas da Campanha (atual Lambari). Nestes inventários também estavam descritos os bens humanos como os escravos: - Francisco congo fujão de idade 46 anos, Francisca parda com uma cria de quatro dias e de idade 30 anos. Era comum o termo “cria”, assim como se diz para filhotes de animais.
Mergulhando no livro do Luiz Alberto, podemos ver estes personagens que viveram a servidão, pagando com sangue, suor e lágrimas, sofrendo privações e ajudando a construir as riquezas de nossa região e país. Construíram grandes casas de fazenda, igrejas e fizeram as colheitas do café.
E ainda, através deste livro podemos resgatar esses personagens do anonimato como o escravo José que montava burro bravo e tocava viola. Um homem que serviu aos nossos antepassados, sem qualquer benefício que compensasse o sequestro de sua terra natal, a mãe África.
LUIZ FELIPE REZENDE
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