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MINHA NAVE AMARRADA NUMA GOIABEIRA

Quando a corrida espacial entre os Estados Unidos e a URSS começou, ainda na década de 60, muita gente se apaixonou por esse tema. Eu fui um deles. Meu primeiro contato foi no jornal da antiga Tv Tupi, vendo aquelas imagens em preto e branco, da nave Apollo 7 sobre a Terra, e depois o comandante Walter Schirra sendo recebido pelo presidente dos Estados Unidos, o texano Lyndon Johnson, um fomentador da guerra do Vietnã. Johnson também era um grande entusiasta da corrida espacial e foi retratado no filme Os Eleitos (de 1983, baseado no livro de Tom Wolfe), dando chilique por não ter sido recebido pela esposa do astronauta John Glenn.


Depois das imagens em p&b, começaram a surgir as imagens coloridas da Terra, também pelo projeto Apolo, e como compôs Caetano numa cela durante a ditadura: - porém não estavas nua, e sim coberta de nuvens. Passei a acompanhar e ler de tudo sobre o projeto Apolo e Soyuz (dos russos), e dos anteriores como Mercury e Gemini. E a respeito desse meu conhecimento, teve gente que sugeriu que eu me inscrevesse num programa de perguntas do Silvio Santos em que se a pessoa respondesse tudo certo, ganharia algum dinheiro no como prêmio, no final.


Mas como era criança, queria transferir as viagens espaciais para as minhas brincadeiras. Pensei em construir pequenos foguetes, projéteis que voassem de verdade, mas achava muito difícil, não tinha conhecimento de física, química, aerodinâmica, como fazem alguns gênios precoces. Então fiquei no mundo da imaginação. Passei a construir naves com latas de leite ninho em que projetava o interior com divisões, painéis eletrônicos desenhados, poltronas com papelão e espuma, e astronautas com papel laminado em tampinhas de garrafa. As naves ficavam interessantes, mas não voavam.


Ainda no mundo da imaginação, como fazer os lançamentos? Antes de mais nada, tudo acompanhava o mundo real, fazia o lançamento no mesmo dia e horário que ocorria no Cabo Canaveral. Parte do foguete Saturno V, que levava os astronautos, era uma bala de canhão encontrada no Pico do Gavião, onde o exército fazia manobras e exercícios militares. Lembrando que o poderoso Saturno V da Nasa foi criado pelo alemão Von Braum que durante a Segunda Guerra, arrasou Londres com seus mísseis V2. A outra parte do meu foguete, era uma lata de Neston, maior do que uma lata de leite ninho. Fazia buracos laterais e no fundo, cobria com um pedaço de jornal para colocar a pólvora e não vazar antes da hora. E a pólvora como conseguir? A pólvora, eu inventei, ou seja, tomei conhecimento da receita para a pólvora caseira: três medidas de salitre do Chile, três medidas de enxofre e duas de carvão. O enxofre e o salitre, eu comprava na drogaria Santa Rita, e o carvão pegava no fogão à lenha de minha casa. Amassava o carvão e misturava com o salitre e o enxofre: estava pronta a pólvora.


E pra subir a nave? Amarrava as latas com fios de lã da minha mãe, e com a ajuda de Luiz Alberto, amigo vizinho, que riscava o fósforo e colocava o fogo na pólvora através da abertura lateral, e eu posicionado no andar de cima do assobradado, na janela, puxava os fios de lã amarrados nas latas, enquanto a pólvora queimava e deixava um rastro de fogo e fumaça no quintal. Nunca tivemos acidentes com a pólvora. Como falei, éramos muito realistas em nossas brincadeiras e até seguíamos os protocolos de segurança da Nasa.


Num dos lançamentos, teve público com a presença dos primos. Aqui faço uma pequena digressão: a inteligência artificial tem conseguido grandes avanços para reconhecer rostos e até captar as emoções que podem ser expressas nesses rostos. Mas a capacidade humana de perceber certas sutilezas pela intuição ainda não foi superada. Pois, senti um clima de mal feito no ar e um ligeiro sorriso suspeito no rosto de um dos primos que foram suficientes pra acender a luz vermelha e acionar os serviços de emergência. Minha nave foi retirada às pressas da plataforma de lançamentos. Logo, teve uma grande explosão detonada por uma bombinha conhecida como cabeça de nego, muito comum naquela época e que tinha grande poder destruidor, além do barulho. A minha nave escapou ilesa.


Após o grande risco dos lançamentos e eventuais atos terroristas, o grande desafio era como vencer a lei da gravidade, como colocar a nave em órbita. Ora, simples, meu caro Watson. Amarrava com os mesmos fios de lã da minha mãe, a minha nave no alto de uma goiabeira, de lá, ela não caía, sem chance para a lei da gravidade.


E o grande momento mágico, qual era? Se eu lia no jornal que seria realizada uma manobra de correção de órbita, também fazia essa manobra na mesma hora prevista. Se a manobra seria às 21h30 pelo horário de Brasília, antes das 21h30, ia para o quintal escuro, entre pios de corujas e voos rasantes de morcegos, subia na goiabeira com uma lanterninha na mão, abria a minha nave e simulava com os astronautas sob o papel laminado as correções de órbita. Dava uma pausa e olhava para o céu imensamente estrelado na noite de uma cidade do interior do sul de Minas. Imaginava lá em cima os astronautas fazendo as mesmas manobras que a minha nave também estava fazendo no alto de uma goiabeira.


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