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ESTUDANTE DE CURSINHO EM BEAGÁ

Após um tempo fora da escola (por opção própria em tempos conturbados), voltei com uma bolsa de estudos, quando num bom momento de inspiração e sorte, consegui 75% de desconto para o cursinho pré-vestibular Pitágoras, em Belo Horizonte, em 1978. Curioso que escolhi a língua francesa como língua estrangeira opcional. O que me motivou essa escolha, não me recordo, mas havia feito antes um intensivo da língua, na Aliança Francesa, na Av. Afonso Pena.


O que de imediato me impressionou no Pré Vestibular, foi o nível dos professores e a interação deles com os alunos. Lembro do professor Chicão, de Biologia e suas brincadeiras durante as aulas, do professor de Física e os seus exercícios clássicos de mecânica: aceleração e gravidade, e do professor de Geografia, muito culto, que me chamava de “santinho barroco”, devido a barba e os olhos claros. Toda vez que me chamava de “santinho barroco”, uma moça de cabelo ruivo, com jeito de bruxinha irlandesa, achava graça e sorria.


Algum tempo depois, encontrei o professor Chicão de Biologia, acompanhado de sua esposa que estava grávida, num bar na Avenida Augusto de Lima. Bebemos cerveja e conversamos. Ele me falou que estava comprando um sítio e que iria adotar neste sítio todas as práticas ecológicas (hoje falamos sustentáveis) na exploração da terra - e falou que a região ainda era bem preservada, tinha até a presença de onça.

Quando abordamos política, Chicão falou com indignação que Caetano Veloso e Gilberto Gil traíram a nossa geração ao não se engajarem na luta contra a ditadura. Acho que foi um equivoco do professor.  Caetano e Gil eram apenas artistas, é  uma cobrança muito grande sobre eles. Passaram pelo presídio, numa época barra pesada de torturas, depois foram para o exílio em Londres.

 

Na mesma Augusto de Lima, participei de passeatas dos estudantes secundaristas: - o povo unido jamais será vencido! Vinham os caminhões com os soldados da polícia militar de Minas Gerais e os cães pastor alemão que investiam na multidão. Vi um rapaz ao meu lado ter a calça e a canela rasgadas pelas mandíbulas de um cão raivoso. Corríamos para a famosa galeria Maleta. Lá, os meganhas não entravam, pois respeitavam o comércio. Os policiais desciam a rua, e o povo saía da galeria e voltava a gritar: - o povo unido jamais será vencido.


Mas vi muita gente ser presa e ser colocada nos caminhões, após a polícia cercar a Faculdade de Direito, uns duzentos metros abaixo do Maleta. E encontrei na entrada do Maleta, o conterrâneo Jaime Nogueira, estudante de Jornalismo e Direito na UFMG, que era um dos organizadores da passeata. Jaiminho me falou que naquele momento iria para um apartamento no prédio do Maleta, o QG deles, onde fariam o balanço de quem foi preso.

Outro tricordiano que costumava ver em frente ao Maleta, era Carlinhos Delamônica, perseguido pela ditadura nos anos sessenta. Seu nome e foto frequentaram os cartazes de “subversivos” procurados pelo regime militar. Esteve preso e sofreu torturas.


Na entrada da galeria do Maleta, ficava o bar Pelicano, e sempre via lá os escritores Murilo Rubião, mestre da literatura fantástica e Roberto Drummond, cronista do Estado de Minas, autor do romance Hilda Furacão (foi minissérie na Globo) e que também era um atleticano ostensivo. O Atlético na época tinha Reinaldo e o nome do jogador ecoava pelas ruas da cidade: - Rei, rei, Reinaldo é o nosso rei. Reinaldo também teve postura política contra a ditadura e sofreu perseguição na seleção brasileira.

 

Insisto na galeria Maleta, e continuo falando dela, pois era um ponto importante na vida e cultura das alterosas. Na entrada da galeria, também era comum ver Beto Guedes e Lô Borges, os dois com jaquetas e calças jeans, violões em estojos de capa dura – tinham o ar de nerds da música – eles ficavam um bom tempo conversando ali. Já tinham fama, mas não sofriam assédio.

 

E no fundo da galeria havia uma pastelaria de chinês, onde eu ia comer esfiha. Mais tarde me alertaram que os chineses eram informantes do DOPS, havia um decalque do órgão repressor no alto de uma prateleira. Num dos bares, ainda no fundo do Maleta, assisti pela TV a seleção argentina golear a seleção do Peru, e isto numa dependência de resultados, eliminava o Brasil da Copa que foi realizada na Argentina. Lembro de um senhor que estava indignado numa mesa ao lado. O Brasil, invicto, estava sendo eliminado. Naquela época, eu estava indiferente ao futebol. Muitos anos depois, foi revelado que aquela vitória foi comprada pelo ditador Rafael Videla – o futebol sempre sendo utilizado como forma de promoção das ditaduras.

 

Daquela época, me lembro de uma moça no cursinho, morena clara que se tornou minha amiga. Ela queria estudar Sociologia ou Antropologia. Saíamos após as aulas na rua Bahia e andávamos por outras ruas de Beagá, após a chuva. Era de família de fazendeiros ricos do norte de Minas que compraram apartamento na capital pra filha estudar. Eu estava numa fase de desencanto com a literatura e dizia que quanto mais lemos, mais estamos em desacordo com a vida e o mundo. E a moça pensava o contrário, queria se aprofundar na leitura e no estudo. Hoje, penso, que ela estava certa.

 

Às vezes, andando sozinho, gostava de visitar o Museu de Geologia que ficava na esquina das ruas Bahia com a Augusto de Lima. Ficava lá vendo as belas esmeraldas, ametistas, águas marinhas, turmalinas... Pedras multicores translúcidas, brilhantes e exibidas em suas curvas, ângulos e sinuosidades.

 

Ainda sobre esta fase de aluno de cursinho, guardo comigo umas três apostilas de Biologia que considero objetos de estimação. O curso tinha profundidade, me ajudou em minha base em biologia. Os professores amavam as suas disciplinas e passavam este entusiasmo para os alunos. Tenho escutado isso, e concordo que além da transmissão do conhecimento, o professor deve cativar o gosto pelo assunto, e talvez este seja o maior legado que um professor pode deixar, neste caso, para um estudante de cursinho que estava procurando o seu rumo na vida.

 

Luiz Felipe Rezende



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