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UM FUSCA VERMELHO E UMA BANDEIRA DO FLAMENGO (não é uma crônica sobre futebol)

Flamenguista, boa praça, ele e a família pareciam muito alegres; e viajavam do Rio num fusquinha vermelho que bravamente transpunha a Mantiqueira para passarem as férias de janeiro na cidade do sul de Minas. Eram tios de um amigo vizinho. Um detalhe sobre o fusquinha, é que dentro sempre havia uma bandeira do Flamengo – ele estava sempre pronto para ir ao estádio. O ano? 1968 ou 1969. Naquela época, meu amigo e eu vivíamos no mundo do futebol de botões, filmes de James Bond e faroestes.


O tio do amigo trabalhava no exército, não me lembro se era militar (talvez, sargento) ou funcionário civil. E contava histórias de horrores para o meu amigo. Era testemunha, contava como testemunha, e não um executor daquelas atrocidades. Eu achava que o meu amigo exagerava sobre essas histórias que eram relatos de torturas dos “subversivos”. Coisas como choques elétricos em todo o corpo nu (cabeça, órgãos genitais); empalamento (introdução de cassetetes embebidos em pimenta no ânus), afogamentos (às vezes em água com fezes), estupros coletivos e colocação de baratas e ratos nas vaginas das prisioneiras entre outras monstruosidades. Exagero, repito, imaginação do meu amigo – eu pensava. Isso não devia acontecer.


Nos aniversários de minha avó, um tio brizolista também contava histórias de sindicalistas bancários que foram presos e torturados. Contava meu tio: “- levaram fulano pra Belo Horizonte e acabaram com ele” - e as torturas eram semelhantes as que citei no parágrafo anterior. Meu pai olhava meio cético, também devia achar que o meu tio exagerava. Pensávamos talvez, naquela lógica de quem conta um conto, sempre aumenta um ponto.


Tudo aparentava normalidade num “país que ia pra frente”. Os jornais eram censurados, sendo assim as notícias de corrupção não eram publicadas. Todo filme, novela ou programa de TV tinha que ser avaliado e depois se exibia um documento da Censura Federal antes de início do programa.


Ainda sobre as minhas memórias da época da ditadura, lembro que quando ia comprar pão na Padaria Pão de Ouro, na rua Direita, estavam lá afixados nas paredes, os cartazes dos “subversivos” – num formato tipo “wanted” como nos faroestes – qualquer informação sobre aquelas pessoas seria bem-vinda. Junto às fotos, um breve currículo com o nome, a profissão e a idade do procurado. Ficava impressionado como a maioria era de gente estudada: professores, economistas, historiadores, sociólogos, engenheiros… E lá também estava a foto de um tricordiano que era um brilhante professor que ajudava todo mundo que estudava para concursos e vestibulares.


Há outras histórias sobre a época da ditadura que não entrarei em detalhes aqui. Quanto às atrocidades relatadas acima, foram confirmadas posteriormente em inúmeros relatórios, documentos oficiais e depoimentos; ainda com saldos tenebrosos de mortes e desaparecimentos. Não era exagero! Mas é de duvidar mesmo, acreditar que seres humanos já fizeram isto com os seus semelhantes, aqui no Brasil.


Repito que o tio do meu amigo parecia boa praça. Fico pensando, se para ele aquelas monstruosidades se justificavam diante do combate de uma pretensa ameaça ao país. Ou se no fundo, aquilo poderia lhe incomodar a consciência. Assistia por obrigação e ossos do ofício.


Já ouvi dizer que alguns casos de fanatismo por clubes, agremiações, religiões e idolatrias em geral, no fundo escondem abismos de crises de consciência e graves conflitos psicológicos/emocionais. Suponho que se este era o caso do tio do meu amigo, aí então dá-lhe Flamengo, muito Flamengo:


- Mengoo! Mengoo!


Imagino o tio do amigo balançando de maneira enérgica a bandeira no Maracanã lotado.


Luiz Felipe Rezende






 

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