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LEITURA SILENCIOSA

Foi no Grupo Escolar Bueno Brandão (“calça rasgada faltando botão”). Teríamos aula de “Leitura Silenciosa”. Cada aluno deveria levar um livro de casa.  Fui ao porão, com os seus cheiros de mofo e ratos e catei o livro “Água Mãe”, de José Lins do Rego que pertencia a meu pai. Exemplar de capa azul dura, terceira edição e pasmem o ano de publicação: 1948, do Círculo do Livro (ainda guardo o exemplar).


Para a aula de leitura silenciosa, as crianças iam para a sala em fila indiana, disciplinadamente com as mãos para trás, enquanto a professora, coordenadora e entusiasta desta ideia nos aguardava na sala de leitura. E aquela experiência nova para uma criança de uns sete/oito anos teve os seus efeitos. Lá estava a descoberta de um mundo fantástico em que as palavras formavam imagens. O romance de  José Lins se passa em Araruama, no estado do Rio. Há uma Casa Azul à beira de uma lagoa. Uma casa com a sua maldição e seus fantasmas. No meio da história havia um jogador de futebol como personagem. O romance tem dois ingredientes que me fascinavam na infância: histórias de assombração (muitas delas contadas por minha avó, dona Carmelita,  antes de dormir) e o futebol. Naquela época, o futebol ocupava a maior parte de minha cabeça, coração, pernas e músculos. O personagem, um homem simples, filho de pescador, sai de Araruama e vai jogar num grande time no Rio de Janeiro. José Lins narra detalhes e bastidores do mundo do futebol com a cartolagem, contusões e fama. E o autor, um flamenguista roxo, foi diretor do clube e até chefiou a delegação da seleção brasileira em excursões no exterior.


Quanto à casa amaldiçoada, a Casa Azul, ocorriam aparições: “...viam um vulto de homem passar de um lado para outro do alpendre. Os cataventos velhos davam para puxar água de repente, e por baixo da figueira branca uma moça, nas noites de lua, ficava cismando. Era uma linda moça de cabelos soltos...”

E os pescadores viam coisas na casa que estava abandonada: “...Olhou bem e tudo lá estava como numa noite de baile. A casa toda iluminada, o alpendre cheio de gente”.


E José Lins mergulha na narrativa e descreve as atividades da população: “...Os pescadores de camarão nas noites de escuro, iluminavam a lagoa com as suas tochas e candeeiros e na água mansa, deitavam as redes, furavam a terra com varas, faziam rumor, e no silêncio e na paz da noite escura pareciam uma multidão de guerreiros”.

Muitos anos depois, quando estava hospedado numa casa de praia em Saquarema, devido à proximidade dos municípios, aproveitei  para conhecer a lagoa de Araruama. A lagoa me pareceu descaracterizada, sem o encanto devido, talvez por causa do avanço da urbanização. E após meu olhar percorrer toda a orla, não encontrei a Casa Azul, se de fato ela existiu.


Leitura silenciosa -  era o nome dessa aula em que as crianças se assentavam em pequenas cadeiras na sala do Bueno Brandão e se debruçavam sobre os livros nas mesinhas na tentativa de compreender o que aquela junção de palavras num livro queria dizer.  Era uma iniciação à leitura.

A palavra cantada é maravilhosa, a palavra falada tem a sua força espontânea e crua, mas ainda acho que a palavra silenciosa tem maior capacidade de nos levar a pensar de forma mais profunda. Leitura silenciosa, até hoje, pra mim ainda é a melhor forma de perceber as sutilezas, refletir as ideias e deixar as palavras invadirem a imaginação e a alma.


LFR



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